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Entre aspas: Não me esqueça


Ouço o sino da catedral bater meia noite, e espero. As lembranças chegam devagar, tomando conta da minha mente bem de mansinho. Hoje não é nenhuma data marcante, nenhum dia além de qualquer outro, onde a lembrança de nós dois ameaça me dominar por inteira. Eu não preciso de dias marcados para lembrar de você, de um horário para chorar. Só é de vez em quando, que essa minha saudade aperta no peito, e a vontade de te ligar predomina na minha mente. Sem avisar ou mandar um bilhete prévio, a vontade de você se avança pelo meu corpo inteiro – desde o dedão do pé pintado de vermelho, até a última californiana dos meus cabelos. E o telefone está tão perto… Por Deus, porque ainda não o joguei pela janela? Eu devia saber que nunca seria capaz de resistir ao ímpeto de ouvir tua voz, de te falar todas as coisas bobas que sempre acabam saindo quando escuto tua risada, de preencher esse estranho vazio que se forma no meu interior. Me desculpa pelos exageros de poeta.


Escuto a discagem do celular começar a ecoar na minha mente. Tantas vezes já escutei esse mesmo barulho, e em nenhuma delas lembro de ter tido tanto medo do depois. E se você desligasse na minha cara? E se atendesse? O que dizer? É tanta coisa que eu tenho pra te falar que, sinceramente, não sei se vale à pena. Não sei se devo perder meu tempo tentando consertar nós dois porque, talvez, já não tenhamos mais jeito. Acho que já nos perdemos tanto em meio a essa confusão que nossos caminhos ficaram inacessíveis. Minha mente – ou, pelo menos, a parte racional dela – sabe que é uma grande loucura estar te ligando. E por meio segundo essa parte racional toma controle, e meu dedo pousa sobre o botão vermelho, até que… Me desculpa pelos sermões.


- Demorou para ligar – a tua voz risonha não mudou nada. Nunca muda, pra ser sincera. Sempre esse mesmo tom de deboche, esse sarcasmo irritante que sempre teve o poder de me enlouquecer. Sinto minhas pernas tremerem e me sento na cama. Fico quase um minuto muda, na espera de encontrar minha voz. Por que, Deus, porque eu fui fraca? Estava quase me esquecendo desse efeito que você tem sobre mim. Quase lá, quase…


- Como sabia que era eu?


Silêncio.


- E quem mais poderia ser, à uma hora dessas? Que eu me lembre, a única louca o suficiente para me ligar de madrugada, é você. – tua risada. Sempre a mesma sonoridade calma que me fazia pensar que nada no mundo poderia dar errado. Sempre me lembra as tardes de domingo, as comédias românticas que me faziam chorar. Tua risada me lembra minha ingenuidade, a perda da minha inocência. Tanta graça desperdiçada, tantos começos perdidos. Me desculpa por ter tido voz.


- Talvez alguma das tuas novas amigas… Vai ver encontrou alguma parecida comigo. – Menos engraçada, mais bonita, menos louca, menos obsessiva. Mais graciosa, menos fria, mais carinhosa. Mas parecida, talvez.


Silêncio. Silêncio. Silêncio.


A linha fica quase muda, e eu só sei que ainda está aí, por conta da tua respiração. Está mais acelerada, embora não tão descompassada como a minha. Eu arquejo, não mais respiro. Me desculpa por reagir tão rápido à você.


- Ana…


As lágrimas chegam nos meus olhos. Respira fundo, não chora, não banca a garotinha, por favor. Coragem, menina, coragem.


- Por favor, não faz isso comigo.


Tarde demais, meu estômago já se embrulhou e meu coração deu mil saltos e pulos e voltas, só pela menção do meu nome nos teus lábios. A lembrança dos momentos de paixão, quando chamavas por mim, gritavas meu nome, arquejavas essas três letras. A tua voz me sendo sussurrada no ouvido, mesmo que por um celular, me assalta e me leva todo o pouco orgulho que me havia restado. Me desculpa por ter me entregado tão facilmente.


- Não fazer isso o quê? Te chamar pelo teu nome? Não brinca comigo dessa maneira, porra. Você me liga e depois diz pra não fazer “isso” contigo. Isso o que, Ana?


Sempre a mesma voz rouca que foi capaz de me enlouquecer. Sempre aquele mesmo pedido escondido para que eu me tornasse tua. Porque sempre me provoca, amor? Porque sempre me transforma nessa manteiga derretida? Tão mais fácil seria me destruir, me transformar em pó. Mas não. Você insiste em fazer teu trabalho só pela metade. Me deixa ser metade-poeira-metade-calor. Sempre nessa espécie de meia vida. Por que você não acaba comigo, amor? Me desculpa por ser tão fraca.


- Isso. Essa mania de falar meu nome devagar, colocando a sílaba tônica no lugar errado. Essa mania de ser errado sempre. Não me convoca, não me chama. Conversa comigo como se fosse outro alguém, por favor. Me menospreza. Mas não me chama pelo nome, não me faz ficar feliz por ter ligado.


Silêncio.


- Então porque me ligou?


Então porque te liguei?


- Não sei, precisava ouvir tua voz. Saber se você está bem, se aquela loira sem sal está te fazendo feliz. Não sei qual é a loira sem sal da vez, mas me contaram que, depois de mim, nunca houve outra morena. Só loiras sem cérebro.


Falo baixinho e rápido na esperança de que você não tenha entendido nada e não tenha notado a minha crise existencial deslocada. Você sempre odiou loiras, o que foi que te aconteceu? Você sempre odiou garotas sem cérebro, porque mudou de repente? Você teve essa vontade repentina de mostrar ao mundo como já havia me esquecido, e a cada manhã acordava em uma cama diferente. Todas loiras, nenhuma morena. Porque isso, por quê? Me desculpa pelas ligações desesperadas.


- É mais fácil, só isso.


Silêncio.


- Não entendi.


- Por que deveria?


- Não sei. Mas também não sei por que liguei, então, espero que valha a pena. E aí, elas tem te feito feliz? Porque desistiu das morenas?


- Me lembram você.


Silêncio.


- E as outras, não lembram?


- Só quando eu fecho os olhos.


A chuva começa a cair devagar, como se não quisesse ser notada. Pela rua, tantos corações podem estar sendo partidos nesse exato momento. Como o meu. E não deveria haver alguém, aí fora, pronto para me abrigar em seu peito e cantar enquanto durmo? Não deveria haver outro coração partido para desfazer os teus erros? Provavelmente, há. Mas não tenho forças de desligar o telefone e sair para procurá-lo. Você reclama tanto que eu falo por códigos, e olhe isso – eu ainda estou sentada, tentando ler tuas entrelinhas. Me desculpa por ter posto açúcar demais no teu café.


- Ainda ta aí?


- Tô sim.


- E não vai falar nada?


- Não tem mais o que falar.


Era isso que eu precisava ouvir – que você ainda lembra-se de mim. Só isso, e a minha ligação desesperada já valeu a pena. Eu precisava da certeza de que não havias encontrado alguém que te fosse melhor do que eu, que te fizesse um bem maior. Não quero te ver sofrendo, nem de perto. Quero que sejas feliz, juro com todo meu coração. Mas não com outra pessoa. Sozinho, que seja. Quero que sorrias ao ver tua imagem no espelho, mas não olhando para a foto de outra garota. A gente nasceu para ser, e não foi. Por vaidade do destino, por descuido nosso – não sei. Mas não te quero sonhando acordado por um rosto que não seja o meu. Mesmo que não te queira do meu lado, mesmo que te queira a quilômetros de mim. Não quero imaginar outro alguém te fazendo rir da piada sem graça do cavalo, ou te vendo acordar de mau humor e bagunçando teu cabelo despenteado. Essa sou eu, e ninguém mais pode ocupar meu lugar. Por isso, eu precisava ter certeza de que ainda lembravas de mim. Me desculpa por ter cochilado no teu filme favorito.


Silêncio.


- E se eu tivesse te pego pelo braço quando me dissestes que ia partir?


- Eu teria ficado.


- E agora?


- Já é tarde demais.


- Talvez seja cedo, quem sabe a gente ainda não se cruza por aí.


- Duvido muito.


- Então, por que me ligou?


Porque te liguei?


- Você sabe que dia é hoje? – pergunto baixinho.


- Não. Que dia é hoje?


Claro que não, ninguém mais sabe além de mim. Eu escondi essa data a semana inteira, na esperança de que estivesse dormindo, quando ela finalmente chegasse. Faz 1 ano. Exatamente um ano desde a primeira vez que te vi com outros olhos. Desde a primeira vez que cheguei em casa e disse para o espelho: “É ele!” O último da minha lista infinita de decepções. Aquele que encerraria a minha trágica trajetória em busca do amor. Aquele que teria o maior colo do mundo, o peito mais confortável, o cheiro mais delicioso. Faz um ano que planejo nossa vida. Faz um ano que minha inspiração começou. Afinal, como já disse, a dor nos inspira.


Era pra doer tanto?


Me desculpa pela ausência.


- Feliz aniversário, meu amor. – sussurro devagar, quieta. Mantenho o tom baixo pensando que, talvez, você não repare nessa minha loucura romântica. Falo rápido para que você não entenda. Mas disse o que precisava. O que estava entalado na garganta. Não quero ouvir tua resposta, não quero pensar no que poderia ter sido.


Então, desligo.


A ligação caiu. Eu caí junto.


Me desculpa pelo silêncio.


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Salt-waterroom

2 comentários:

Anônimo

Me emocionei com o texto, muito, muito lindo!

Anônimo

Ai, muito bem escrito; parabéns!

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